É com uma estranha profusão de sentimentos que recordo o dia de ontem.
Quarenta anos depois, revi os companheiros, que em terras longínquas da Guiné-Bissau, partilharam comigo momentos suigeneris e, naturalmente, irrepetíveis.
Alguns, foram facilmente reconhecidos, outros, só através da identificação que traziam ao peito, indicando a Companhia, que facilitava a troca de impressões, levava (ou não) ao reconhecimento.
Relativamente a mim, era de certo modo fácil o reconhecimento, porquanto lhes dizia que era o furriel de transmissões João Batista, aquele que, tanto em Piche como em Bula fazia as emissões de rádio, com ao designação de H20NOTURNA, emitidas das 20:00 às 22:00 e de um serviço noticioso compilado dos noticiários da Emissora Nacional e da BBC, previamente sancionados pelo nosso Comandante Andrade e Sousa ou pelo nosso Comandante de Operações Capitão Caetano e que ia para o ar, diariamente, às 14:00, com a hora seguinte a ser dedicada à emissão de temas musicais "actuais".
À noite, o período entre as 21:00 e as 22:00 era exclusivamente dedicado à passagem de "discos pedidos", tanto dos aquartelados como dos familiares que me enviavam aerogramas solicitando este ou aquele tema musical para este ou aquele militar.
E é curioso que, ainda ontem, durante o almoço, um camarada da C.C.S. me dizia que , há dias, quando se deslocava na sua viatura, ouviu um tema musical que o fez recuar 40 anos, pois lembrava-se de que, há precisamente quarenta anos, ligou para o programa H20NOTURNA, em Piche, a solicitar a passagem do disco "o que é que eu vou fazer domingo à tarde", interpretado por Nelson Ned.
E dizia ele. "E quem é que haveria de dizer que hoje nos encontramos aqui...!"
São momentos saborosos como estes que nos fazem reviver, com a consequente nostalgia, aqueles meses do ano de 1974, passados em África.
Tantas e tantas recordações a povoarem hoje os nossos pensamentos e tantos pensamentos a voarem nas suaves asas do tempo em direção a um passado que, inequivocamente, deixou a sua marca no mais profundo dos nossos sentimentos.
Depois, olhar para aqueles camaradas que há 40 anos eram jovens, como eu (como nós) e vê-los hoje... é como se estivesse a observar um pintor que sofregamente misturava numa paleta muitas e muitas cores e não conseguia encontrar aquela que melhor coloriria a sua tela.
É como se aquele pintor não conseguisse encontrar a tonalidade certa para transportar para a tela o seu nostálgico sentimento, porque a implacável erosão da vida já não lhe o permitia...
E aquilo que mais me chocou, foi um camarada dizer-me que já não se recordava de nada do que passou na Guiné, que se tinha esquecido de tudo.
- "sabe, eu já tenho 62 anos... e a minha cabeça está muito esquecida"
Acredite (alferes) Bernardo que me emocionei ao ver aquele jovem de há 40 anos, trémulo e esquecido...Um jovem com a minha idade, mas a quem a vida roubou o sabor da nostalgia e da recordação.
Por tudo isto, disse no inicio deste mail que "é com uma estranha profusão de sentimentos que recordo o dia de ontem".
Mas estou contente. Estou contente por ter estado no meio de tantos camaradas, pese embora já não reconhecer a maior parte. Porém, vendo a situação pelo lado mais favorável, ou seja, aquele que constitui um lenitivo, acabamos por ajustá-la ao tempo em que formámos Batalhão, em Évora.
Também aí, quando chegámos ao RI16, não nos conhecíamos. Passámos a conhecer-nos e fomos conviver para terras de pó vermelho e de gentes de pele lustrosa, mas com a alma nobre e quente, tal como a nossa.
Depois, bem... depois... é como se acordássemos de um sono que durou 40 anos... um sono cujo despertar é gratificante porque estamos vivos... mas que, inexoravelmente, deixou as marcas do tempo inculcadas em cada rosto e em cada semblante...
Termino este mail felicitando-o, assim como aos outros membros da organização do convívio, designadamente o Rodrigues e o Mendes, pela forma como decorreu.
Estão de parabéns.
Muito obrigado pelo vosso empenho, sem o qual nada seria possível
Aproveito para enviar umas fotos que tirei e que se vir interesse, poderá incluir no seu "blog".
Daqui a uns dias, enviarei fotos, digitalizadas, de há 40 anos
Apertado abraço do
João Batista (furriel da CCS)